Renato Sabbatini O poder do terapeuta Em um interessante seminario realizado na semana passada em Campinas, intitulado "O poder do terapeuta, a etica e a psicanalise", psiquiatras, psicanalistas e psicologos debateram um tema de grande atualidade e relevancia, que e' o conceito do poder com que se investe um terapeuta, ao tratar um paciente com algum problema de saude mental. Fui convidado a participar como um dos debatedores, em virtude de alguns artigos que escrevi para esta pagina do Correio Popular, os quais, segundo os realizadores do seminario, causaram "grande celeuma" entre a classe dos psicoterapeutas. Se referiam, evidentemente, aos artigos intitulados "O ocaso de Freud" e "Fraudes freudianas", nos quais manifestei uma posicao algo cetica sobre os poderes curativos da psicanalise tradicional e suas inumeras dissidencias. Criticas, alias, que nunca se dirigiram a pessoas ou grupos em particular, mesmo porque tenho grandes amigos entre os psicanalistas de varias matizes, como o Prof. Joel Giglio, junguiano de quatro costados, professor de Psiquiatria da UNICAMP, e que tambem participou do seminario. Defendi a opiniao (que nao e' so' minha) de que a psicanalise freudiana e suas correntes derivadas reunem uma mistura perigosa para a etica terapeutica, de apego excessivo a um modelo da mente, e de utilizacao pratica desse mesmo modelo para influenciar a vida mental e social de seres humanos. O modelo psicanalitico do psiquismo, ao meu ver, nao tem evidencias cientificas suficientes ao seu favor, e e' apenas uma abstracao laboriosa e complexa (para nao dizer algo bizarra), a partir de observacoes muito indiretas da operacao das funcoes cognitivas e emocionais do ser humano, tais como os sonhos, os lapsos, etc. E' preciso realmente muita coragem para realizar terapia de seres infelizes, atormentados e ate' em perigo de vida (por suicidio), utilizando apenas esse modelo. Tanto e' assim, que mais de 95 % dos pacientes com desvios de saude mental utilizam algum medicamento psicoativo, em conjuncao ou nao com alguma forma de psicoterapia. Uma consequencia funesta do apego excessivo de certos psicanalistas, ou de certas correntes de psicanalise (nao todas, mas, curiosamente, todas baseadas nos EUA) ao modelo de memorias suprimidas, por exemplo, e' a atual epidemia de pacientes processando judicialmente seus analistas, devido ao fato destes terem induzido o "reaparecimento" de memorias falsas, para explicar problemas psicologicos atuais. Este e' um velho truque no arsenal dos psicanalistas, utilizado ate' mesmo por Freud para condenar os opositores as suas teorias -- para ele quem era contra a psicanalise tinha motivos neuroticos ocultos, e portanto tenderia a resistir a eficacia terapeutica. Casos escabrosos vieram a tona, nos quais pessoas tiveram destruido seu relacionamento com os pais, a partir da evidencia (totalmente falsa), proporcionada por seus terapeutas, de que eles tinham sofrido abusos sexuais, rituais satanicos, etc., quando pequenos. Segundo um eminente psicanalista americano, essa sindrome das falsas memorias e' extremamente preocupante, pois nao estaria restrito a alguns terapeutas individuais, mas seria o reflexo de um fenomeno amplamente prevalente e mantido oculto por varios interesses (inclusive financeiros). E' justamente aqui que discutimos o conceito de poder do terapeuta. Poder nos dois sentidos do termo, ou seja, tanto a capacidade de ajudar efetivamente o paciente a superar os seus problemas; quanto o poder como dominancia de um ser humano sobre o outro. Ambos tem enorme relevancia para a etica. Por exemplo, os codigos de etica da Medicina e da Psicologia determinam que o terapeuta e' obrigado a escolher o metodo mais efetivo de seu conhecimento. A verdadeira vassalagem do terapeuta a um modelo teorico duvidoso representaria, entao, uma quebra dessa etica. O certo seria ele encaminhar o paciente a um outro terapeuta (por exemplo, um neurologista ou um psiquiatra), se sentisse que o metodo que adota e' insuficiente. Infelizmente, nem todos fazem isso, devido a motivos financeiros. O poder do terapeuta se torna desumano e ameacador, nesses casos, e o pobre do paciente nao tem a quem recorrer, porque em geral ficou dependente da relacao com o terapeuta. Ate' o final do seculo, espera-se que ocorra um enorme progresso nos metodos de diagnostico e de tratamento baseados no conhecimento sobre a biologia das doencas mentais. Na minha palestra, mostrei as tecnicas atuais de obtencao de imagens sobre o funcionamento normal e patologico do cerebro, com o a tomografia de emissao positronica (PET). que estao revolucionando a psiquiatria, bem como o arsenal de intervencao genetica e quimica sobre o cerebro, que aumentam exponencialmente a cada dia. Afinal, foi o proprio Dr. Freud que vaticinou a irrelevancia de suas teorias, a partir do momento em que o homem souber como funciona o cerebro e como corrigir biologicamente suas disfuncoes ! Correio Popular, Campinas, 21/4/94