Renato Sabbatini Os canibais A imprensa noticiou recentemente um fato vergonhoso para nos, brasileiros, e ao mesmo tempo, profundamente repugnante (menos, ao que parece, para os protagonistas da estoria). Um grupo de favelados, explorando um lixao em Olinda, em Pernambuco, descobriu partes do corpo retiradas de seres humanos por amputacao cirurgica, e os devoraram (segundo uma das senhoras canibais, fritas, e com um belo acompanhamento de cuscuz !). O fato foi denunciado por missionarios episcopais, e confirmado pela Secretaria de Saude de Recife. E' algo grotesco, que desafia a imaginacao de qualquer pessoa. Existe, em quase todos os seres humanos, mas principalmente os das sociedades modernas, um tabu cultural fortissimo contra o canibalismo. Esse tabu vem de muito longe, no tempo, e provavelmente foi incorporado aos codigos de moral como uma forma de manutencao das relacoes sociais nao destrutivas, mesmo em tempos dificeis. Somente em condicoes extremas de penuria e fome coletivas ocorre uma violacao consciente do tabu, tais como durante o cerco nazista a Leningrado, ou entre os sobreviventes de um desastre aereo nos Andes chilenos. Seria essa condicao extrema a causa do sucedido em Olinda, ou as pessoas ali estao em grau tao elevado de imbecilizacao e desumanizacao, que o tabu do canibalismo foi quebrado com tanta facilidade ? Se isso for verdade, realmente algumas partes do Brasil e de sua populacao desassistida estao chegado ao fundo do poco da dignidade e do auto-respeito humanos. Falta pouco para comecarem a ocorrer assassinatos para fins de consumo de carne humana. A distancia entre um fato e outro e' pequena, basta uma pequena descoberta ! As poucas sociedades primitivas que apresentaram o canibalismo socialmente sancionado, o praticavam dentro de um conjunto de rituais religiosos ou sociais com funcoes bem definidas e limitadas. Entre as diversas populacoes indigenas das Americas, Africa e Oceania, por exemplo, o guerreiro comia partes do inimigo morto com a finalidade de incorporar sua coragem, ou se comia o parente morto para nao deixar seu espirito se perder (alias, canibalismo tem como origem etimologica o nome canibales, dado pelos espanhois aos ferozes indios caribes, habitantes daquela regiao descoberta por Colombo). Outros povos acreditavam que comendo o corpo do inimigo, se eliminava totalmente a possibilidade de seu espirito se incorporar novamente. Os astecas e maias devoravam os corpos dos humanos sacrificados aos seus deuses, pois acreditavam assim ficarem mais proximos deles. Existe ate' hoje um debate intenso entre os antropologos se existe em alguma etnia o canibalismo apenas como forma de aquisicao nutricional regular. Hans Staden, no famoso livro sobre seu cativeiro entre os indios caraibas, achava que eles gostavam mesmo de comer carne humana, e o faziam por esporte. E' duvidoso o depoimento de um europeu apavorado em ser o proximo a figurar no cardapio do terrificante cacique Arembepe, e com parco conhecimento sobre a cultura de seus algozes. A limitacao atavica ao canibalismo pode, inclusive, ate' fazer sentido do ponto de vista biologico. Um medico americano, chamado Daniel C. Gajdusek, descobriu que uma sindrome mortal, chamada kuru, grassa entre os canibais da Nova Guine' que comem cerebros, pois e' a unica forma de uma determinada especie de virus se propagar. O curioso e' que uma forma similar dessa doenca, chamada de sindrome de Creutzfeldt-Jakob, foi constatada tambem entre criancas que usaram hormonio de crescimento obtido de cerebros de cadaveres humanos, em uma outra especie de "canibalismo" high-tech ! Imaginem entao o potencial de transmissao de doencas dessa nova forma de canibalismo cirurgico, onde foram consumidas partes de corpos de pessoas doentes, que poderiam estar infeccionadas com hepatite, AIDS, tuberculose, etc. Espera-se que os singulares gastronomos tenham tido o cuidado de cozinhar bem antes do consumo, ao menos para eliminar os microrganismos... Quanto aos hospitais de Recife e Olinda, realmente e' inacreditavel que nao tenham tido o cuidado elementar de incinerar ou enterrar partes do corpo de pessoas, conforme determina a lei, e exige a religiao. Correio Popular, Campinas, 28/4/94.